14.8.10

"Menina limpa, menina suja, notas prévias a uma exposição" de Isabel Carlos

Menina Limpa, Menina Suja é o título de uma série de obras de Ana Vidigal datadas de 2000 e impôs-se como título desta exposição, já que constitui uma síntese perfeita dos seus trinta anos de trabalho que esta exposição antológica pretende revisitar.

A obra de Ana Vidigal (Lisboa, 1960) foi sempre conotada sobretudo com a pintura, mas esta exposição mostra como não deverá ficar reduzida a esse suporte; a própria artista chamou de «trabalho paralelo» a essa outra dimensão mais espacial e, no limite, mais experimental, ou melhor dito, mais livre de cânones e de constrangimentos formais:

«Sempre fiz colagens. E sempre utilizei coisas apanhadas. Hoje tenho pena de algumas colagens que utilizei, tê-las utilizado com pintura por cima. Porque hoje, se as tivesse novamente, utilizava-as a cru.

Começo a fazer o chamado “trabalho paralelo” quando começo a perceber que quem decide sou eu. Que escuso de “camuflar”. Por isso é que digo que para mim o tempo é uma coisa fundamental. O tempo foi-me dando segurança […] A pintura sempre esteve mais acima e as outras coisas estavam um bocadinho mais para baixo. As outras coisas têm vindo a subir e logicamente há-de haver esse ponto em que estando ao mesmo nível elas se cruzam. Se fundem».1

Um esquema – um cima e um baixo – que, em Vidigal, não se limita a uma tabela valorativa das várias dimensões formais do seu trabalho, mas que implica, também, determinadas referências culturais: a alta e a baixa cultura, a massificada e a erudita.

Os trabalhos recentes são um bom exemplo dessa fusão, nomeadamente o que criou para esta exposição, Bravura (Não Vaciles Põe-te a Andar), de 2010, em que, na sequência da exposição “Matar o Tempo” (Galeria 111, 2009), a artista recorre às técnicas da colagem, da ampliação e do recorte. Partindo de imagens de labirintos, jogos e bandas desenhadas publicadas em jornais e revistas, a artista quase que não recorre à intervenção pictórica, o pincel e a tinta perdem protagonismo em relação à tesoura e à cola e as camadas e a sobreposição, os jogos entre palavras e imagens – desde sempre presentes na sua obra –, são agora trabalhados quase exclusivamente através da junção de elementos previamente impressos e retirados da «baixa» cultura, mas que, curiosamente, atingem uma elevada escala em termos de dimensão e ocupação espacial.

Esta antológica procura mostrar as várias dimensões da obra de Vidigal porque elas são contínuas e paralelas e porque seguramente sem o «trabalho paralelo» a pintura seria outra; entre os materiais «sujos» da pintura e a «limpeza» dos materiais de escritório e de retrosaria existe um trânsito e um fluxo de quem deseja inverter pirâmides valorativas e trazer para primeiro plano o que habitualmente está em último.

Logo no início da exposição mostra-se um vídeo de 2000, intitulado Domingo à Tarde, que funciona como uma chave para toda a obra, dado que revela a prática, a metodologia e o processo de Vidigal.

Assumidamente doméstico – câmara fixa, por vezes desfocado, azulejos em fundo –, o vídeo regista a artista a operar uma série de acções sobre o seu próprio rosto: primeiro, cobre-o de fita-cola dupla; depois, adiciona-lhe pioneses, plasticina, enclausura-o num saco de plástico transparente; finalmente, apresenta-o reflectido numa superfície espelhada que o deforma e transfigura com a ajuda das mãos e de sucessivos esgares e caretas.

Martha Rossler, Bruce Nauman, Helena Almeida e mesmo Francis Bacon ecoam nestas imagens, mas nunca de um modo epigonal, antes como consciência assumida que o acto artístico é sempre um aprofundamento ou um passo mais à frente, ou ao lado, daquilo que outros criadores fizeram. Os criadores podem vir de um passado artístico longínquo ou não; no caso de Vidigal, é um passado recente, é a arte do século XX: do modernismo à pop, passando pelo recurso ao texto e à ironia corrosiva do conceptualismo, bem como à desmontagem da iconografia da sociedade mediática operada pelo feminismo.

A auto-representação – e veja-se também a instalação Void, de 2008, em que o rosto da artista emoldurado por uma boina militar forra uma almofada disposta sobre uma cama – a auto-referencialidade, a colagem, a sobreposição, a transparência e a utilização de materiais comuns, tudo está neste vídeo. Mas também a criação de uma espécie de máscara ou armadura que simultaneamente protege e afasta (se entrássemos em contacto com aquele rosto cravado de tachas magoar-nos-íamos). A sequência de acções do vídeo possui também algo de autopunição, a dada altura tememos mesmo que o rosto sufoque dentro do saco de plástico. Um ano mais tarde, a artista usa stills deste vídeo acrescentando-lhes texto para criar uma outra obra que tem um título revelador: Tornei-me Feminista para Não Ser Masoquista.

Punição, castigo e ornamento. O modo como Vidigal lida com o ornamento e o decorativo – papéis de embrulho, padrões múltiplos e variados – é subtilmente cáustico. Equaciona os padrões oriundos das mais banais funções – florinhas, bonecos, papéis de parede, moldes de revista de costura – com o vocabulário modernista e abstracto-geométrico.

O decorativo sempre esteve associado ao mundo feminino e a abstracção ao masculino2; ao contaminar os dois, a artista curto-circuita simultaneamente os dois. A pureza limpa do moderno que com o tempo e a apropriação pelo design e a moda – o vestido Mondrian de Yves Saint Laurent em 1965 bastaria como exemplo – se transformou precisamente em decorativo. E por sua vez os padrões decorativos comuns e massificados, kitchs, foleiros, bregas, são elevados a eruditos ao misturarem-se com o abstracto e geométrico, em pinturas que se colocam nas paredes brancas imaculadas das galerias, das casas afortunadas ou dos museus. Duplo circuito então para perturbar a pirâmide de valoração artística.

Os textos que se seguem de Ruth Rosengarten e Claire Tancons aprofundam as várias vertentes do universo de Vidigal. Rosengarten, num texto seminal e incontornável que aqui se republica, aborda o processo plástico, a genealogia artística e a dimensão narrativa e autobiográfica que atravessa toda a obra; e Tancons interroga a dimensão pós-colonial e femininista. A artista, caso praticamente único nas artes visuais em Portugal, assume desassombradamente uma postura feminista.

Menina Limpa, Menina Suja ou, como escreve numa das obras desta série, «ao lado de uma menina limpa há sempre uma menina suja». Vidigal construiu um universo único e autoral a partir de múltiplas autorias, tanto plásticas como literárias. Os textos que surgem nas suas telas têm, tal como os signos visuais, múltiplas origens e diversas hierarquias:

«Gosto da escrita como caligrafia também, e utilizo tanto frases de Baudelaire como a seguir vou aos meus volumes do “Simplesmente Maria” em fotonovela, todo encadernado, que, se tu tirares as frases do contexto, têm coisas absolutamente maravilhosas. E costumo misturar, tanto coloco uma frase minha, como a seguir uma de Clarice Lispector…»3

Sem nunca ser ostensiva ou propagandística mas sempre lúdica, por vezes marota, a obra de Vidigal é atravessada pela crítica social e de costumes à sociedade portuguesa: uma espécie de retrato iconográfico dos últimos trinta anos de uma jovem democracia ainda atravessada por muitos anacronismos, moralismos e assimetrias. Não o faz através de dispositivos como o documentário, a entrevista, o depoimento ou os documentos históricos, mas antes por um vocabulário artístico constituído a partir das imagens com que crescemos, dos livros infantis à banda desenhada – os primeiros veículos de concepções do mundo e da sociedade que nos enformam e formam.

«Uma das minhas memórias de infância são os livros da Anita, eu adorava a Anita, era absolutamente fascinada, não propriamente pelo que a Anita fazia, mas pelos desenhos. E depois, lembro-me que uma das minhas grandes discussões com a minha mãe, que era extremamente arrumada, era como organizar a minha estante onde tinha a colecção toda da Anita. A minha mãe punha 1, 2, 3, 4, 5… e eu punha encarnados, amarelos, azuis, por cores.»4

Estamos então perante alguém que «arruma» a história por cores e imagens, e não por datas e factos, que entrelaça a chamada alta e baixa cultura, o suave com o duro, o imediato com o complexo, o plano pessoal com o social e político, a Menina Limpa com a Menina Suja.

Isabel Carlos

1 Ana Vidigal em entrevista a Susana Pomba, in Ana Vidigal, Lisboa, Galeria 111, 2009, p. 11.

2 Cf. Mike Kelly, artista com quem Ana Vidigal se identifica, in Crime and Ornament – The Arts and Popular Culture in the Shadow of Adolf Loos, Toronto, YYZ Books, 2002, pp. 129-130.

3 Ana Vidigal, Op. Cit., p. 14.

4 Ibidem.