31.12.10

Mudar de vida

tempo para hoje:
pelo fim da noite e pela manhã
nuvens baixas com probabilidade de nevoeiro.
possíveis aguaceiros pela tarde, com nebulosidade densa mas
variável. e vento forte, muito forte.
possibilidade de um beijo sobre os lábios
até que o prato na varanda transborde de chuva.
estou sentada no meu studio de costas voltadas para a
janela. sei que não é tão cedo que te vou encontrar.
às vezes imagino cenários.
que chego a casa, estás à minha espera. não interessa como
entraste. já lá estás e é só
começo. sento-me ao teu lado. ninguém fala. ficamos assim
muito tempo. depois escurece. pegas no casaco e sais.
eu fico prostrada.
O tempo para amanhã:



«Infelizmente, o meu tempo é
Evidentemente, se há urgência
Hoje, estou particularmente
Claro, se não tens tempo
Quando tiver mais tempo
Com tempo poderemos, mas neste momento
Nunca o tempo me faltou tanto
Talvez, quando tiveres mais tempo
Mais tarde, terei mais tempo!»


Ingeborg Bachmann, Malina, Ediçoões 70, Colecção Caligrafias, Tradução de Maria Fernanda Branco,1989, p. 182

26.12.10

(A) Noite

(mas a noite ventosa, a noite límpida
que a lembrança somente aflorava, está longe )

Cesare Pavese,
 in 'Trabalhar Cansa'

20.12.10

Sem Títulos

Alguém subitamente nos abandona, A perfeição possui vocação de desordem,
A solidão é uma coisa que nos engole, Calafrio, Canis dai – amor constante, Cúpido or not Cúpido, Degelo – o tempo muda o rosto, Demorou além do necessário – o abandono de fevereiro, Dias de chumbo, Ela disse tenho medo de ti, For all the girls i loved before, Gelo – para dezembro vamos com o frio nos ossos, Hálito beijo traidor, Mais morri do que adormeci, Mas quantas vezes a insónia é um dom…Nada se perde quando nada se tem a perder, Nem todo o tipo de lucidez é frieza, Para a namorada que eu sonhei, Para disfarçar o medo, Rugas, Se tu quiseres, Sozinha e equipada, Sussurro, Tantas vezes o sono me surpreendeu. Volto a amar-te.
Twin Peaks, A beleza não tem nenhuma utilidade evidente, Marfim, Bandida,
Batimento Cardíaco, As cevadilhas, espanta-me que sejam venenosas, Je commence (voilà Robert, voilà Nicole, voilà Patapouf), Sevilha, Flowers by the Sea, Hora H, I trust you to kill me, Tuojeaquijá, E com o coração desabitado,
Chambre quinze, quinze (1515), A beleza do acto compulsivo (eu acredito no destino), Domination of Black, Sabia que jamais teria uma amiga assim como ela, As vizinhas do lado, A meio da idade, a meia-idade, ou a idade com meios,
Tempos sombrios traduzem naturalmente arte sombria? Ela percebeu que era inadequado, Walk in the Park, I Kiss in the Dark, Não te estiques, Patrícia,
A chegada à floresta, Love Story, Edição completa, A cabrinha turbulenta,
Detesto o campo, Di-lo meigamente. Desaperta-lhe o cinto., Conheço uns pinóquios com cara de brancas de neve, O pequeno Lorde, Simplezinho, (Lo) go (Ve) rás...,



lembro-me de ti quando lavo os dentes. Todos os dias me lembro de ti quando lavo os dentes.

Pieces and Parts - Plataforma Revólver

Curadoria de Elsa Garcia e Miguel Matos
Nascida em 2002, a Revista Umbigo começou por ser uma publicação sobre arte e cultura com um enfoque específico: o corpo como lugar e assunto da criação artística. Objecto editorial difícil de catalogar, provou a conquista do seu público apesar do deserto editorial em que se situava na época da sua génese. Embora o corpo não seja já o tema fulcral da Umbigo, foi neste assunto que tudo se originou. Quando se completam oito anos, 35 edições trimestrais da revista, que melhor tema para uma exposição comemorativa do que o corpo? É pois este o assunto que, partido e reunido, a Umbigo propõe analisar.

“The human organism is an atrocity exhibition at which he is an unwilling spectator”
J. G. Ballard, The Atrocity Exhibition

Não é assunto novo na arte moderna e contemporânea. O corpo sempre foi um dos objectos mais “remexidos” pela arte. Desde a “lógica da representação à lógica da participação/interacção, do critério do perfeito ao desafio do inacabado, o corpo na arte decanta-se, miscigeniza-se, desproporciona-se, desequilibra-se, desvaloriza-se, efemeriza-se, órfão do sentido único”1. O corpo como realidade física é composto por órgãos, peças e partes visíveis e outras ocultas, apenas imagináveis até à invenção dos métodos e tecnologias médicas de visualização do seu estado interno. Falamos de um corpo que já não o é apenas como um todo, mas também como uma dispersão através da representação das suas partes. Se encarado como objecto estético e metafórico, cada órgão é visto pela sua capacidade iconográfica, seja através da representação realista ou através do rasto da sua passagem ou percepcionado através dos materiais por ele produzido. É uma multiplicidade de imagens que, sendo do corpo, dele já se afastaram. Referem-se ao seu portador, mas vivem de forma autónoma. Estes fragmentos - esta desconstrução - podem constituir um alfabeto, separando as letras da palavra carnal. Cada um deles vive assim em conjunção com outros, coordenados ou não, criando um discurso passível de diferentes leituras que podem ser literais, conceptuais ou poéticas, consoante o observador e o proponente de tais visões. Paradoxalmente, “Pieces and Parts” reune as partes sem nunca se conseguir ver o todo.

Entre os signos e as próteses, as marcas do desejo e as provas de devoção, o corpo é palco daquilo que o próprio corpo sente e pensa. Um corpo analisado em memórias e fragmentos é o mote para uma exposição em forma de lição de anatomia. Através de objectos representativos das peças e partes que compõem o corpo humano, reune-se uma amostra de diferentes abordagens à sua representação. O conjunto resulta numa visão em desconjunto, afasta-se da totalidade física para atingir uma sucessão de imagens e objectos aparentemente sem sentido mas que sugerem a única coisa que os seres humanos inequivocamente partilham: uma idêntica geografia interna, uma cartografia comum, uma máquina orgânica… A exposição reúne linguagens e técnicas divergentes, como a pintura, a joalharia, a escultura, o vídeo e a instalação de autores provenientes de Portugal, Brasil, EUA, Espanha e Sérvia.
Miguel Matos

Artistas:
Alexandra Mesquita, Ana Vidigal, Annie Sprinkle, Carlos Mélo, Clara Games, Cristina Ataíde, Fátima Mendonça, Inês Nunes, João Galrão, Julião Sarmento, Lara Torres, Leonor Hipólito, Lluís Hortalà, Manuela Sousa, Miriam Castro, Miguel Branco, Rafael Canogar, Rui Effe, Sara Maia, Teresa Milheiro e Vladimir Velickovic.

19.12.10

Na morada (certa)

namoro
namoras
namora
namoramos
namorais
namoram
namorei
namoraste
namorou
namorámos
namorastes
namoraram
namorava
namoravas
namorava
namorávamos
namoráveis
namoravam
namorara
namoraras
namorara
namoráramos
namoráreis
namoraram
namorarei
namorarás
namorará
namoraremos
namorareis
namorarão
namoraria
namorarias
namoraria
namoraríamos
namoraríeis
namorariam
namore
namores
namore
namoremos
namoreis
namorem
namorasse
namorasses
namorasse
namorássemos
namorásseis
namorassem
namorar
namorares
namorar
namorarmos
namorardes
namorarem
namorar
namorares
namorar
namorarmos
namorardes
namorarem
namora
namore
namoremos
namorai
namorem
namorando
namorada (certa)





Ontem

14.12.10

“, estando tão ocupada:”

Corpo pegajoso, de calções azuis e t-shirt branca. Copacabana. Cheguei hoje de manhã de Vitória. Não dormi. Havaianas nos pés. Está um calor insuportável, o Inverno aqui é assim. Corpo pegajoso. Ela deu-me um livro de Clarice Lispector. Chama-se Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Começa com uma vírgula. Nunca tinha lido nenhum livro começado por uma vírgula (e no fim, dois pontos). Li-o de um fôlego. E estou zonza. Corpo pegajoso, cabeça zonza. Amanhã faço vinte e três anos e sei que ela (…)
Rio de Janeiro 5 de Agosto de 1983


O resto do meu diário não interessa.
Pinto, não sei fazer mais nada.
Na minha pintura utilizo colagens. Também colo/escrevo textos.
São geralmente textos de outros. Quando escrevo coisas minhas também uso aspas. Evita muita pergunta.
Tenho por vezes ataques de pânico durante a execução de uma tela.
Sei por instinto que não está acabada, mas paraliso.
A pintura é de pratica solitária e a “solidão é uma coisa que nos engole” – aqui está um bom exemplo do que faço na pintura. Quando chego a um impasse vou buscar um texto.
Acho que nunca utilizei na pintura frases de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Mas sei que muitas vezes sou Lóri, (como fui Lóri naquele Inverno quente do Rio de Janeiro) e como Lóri vou aprendendo a ser paciente.
A ficar pronta para poder apanhar o momento.
Ser Lóri é ter prazer sem culpa e a pintura dá-me muito prazer.
Porque nada do que está antes interessa, como não interessa nada do que vem depois.
Na pintura, como nas histórias de amor há que ser lúcida, mesmo que o corpo esteja pegajoso e a cabeça zonza.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres é uma obra fundamental no meu trabalho, pelo momento em que foi dado, pelo momento em que foi lido, pelo momento em que é necessário.
Foi com ele que aprendi a saber com prazer, não perder o momento.
Escrevo isto a 10 de Dezembro de 2008. Clarisse Lispector, que como eu gostava de fumar na cama, faria hoje 88 anos.

(publicado na revista LER,  Janeiro 2009)